Anaïs Nin fala de Lou Salomé

Foi graças a H. F. Peters que conheci Lou Andreas-Salomé, e este prefácio à nova edição de seu livro é um ato de gratidão. Peters traçou dela um retrato completo, embora não dispusesse de todas as informações sobre Lou: foi prejudicado pela destruição de muitas de suas cartas, feita por ela mesma. Graças, porém, à sensibilidade, compreensão e empatia do autor, adquirimos o conhecimento íntimo de uma mulher cuja importância para a história do desenvolvimento da condição feminina é imensa. Peters traçou com amor um retrato que nos comunica o talento e a coragem de Lou.

A falta de um conhecimento total da vida de Lou força nossa imaginação a interpretá-la a luz da luta das mulheres pela independência. Podemos aceitar os mistérios, ambivalências e contradições, porque são análogas ao conhecimento que temos hoje da mulher. Há muitas lacunas a serem preenchidas quanto aos motivos e reações íntimas, aos impulsos subconscientes das mulheres. A história e a biografia têm de ser reescritas. Ainda não dispomos de um ponto de vista feminino para avaliar a mulher, devido a tantos anos de tabus sobre as revelações. As mulheres eram habitualmente punidas pela sociedade e pelos críticos pelas revelações que tentavam fazer. A duplicidade de padrões nas biografias femininas era absoluta. Peters não faz esses julgamentos. Ele nos apresenta todos os fatos de que necessitamos para interpretá-la à luz das novas avaliações.

Lou Andreas-Salomé simboliza a luta para transcender convenções e tradições nos modos de pensar e de viver. Como é possível a uma mulher inteligente, criativa, original, relacionar-se com homens de gênio sem ser dominada por eles? (…)

>> O conflito entre o desejo da mulher de se fundir com o amado e ao mesmo tempo manter sua identidade própria é a luta da mulher moderna. Lou viveu todas as fases e evoluções do amor, da entrega à recusa, da expansão à contração. Casou-se e levou vida de solteira, amou homens tanto mais velhos quanto mais novos. Sentia-se atraída pelo talento, mas não queria ser apenas musa ou discípula. Nietzsche reconheceu ter escrito Zaratustra por inspiração dela; disse que Lou compreendia seu trabalho como ninguém mais.

Durante muitos anos ela teve o destino das mulheres brilhantes ligadas a homens brilhantes: era conhecida apenas como amiga de Nietzsche, Rilke, Freud, muito embora a publicação de sua correspondência com este último mostre que as relações entre os dois se processavam em igualdade de condições, e Freud lhe ouvia com respeito as opiniões. Lou escreveu o primeiro estudo feminista sobre as mulheres de Ibsen e um estudo sobre a obra de Nietzsche. Seus livros, porém, estão esgotados.

Se foi inspiração para Rilke, também se rebelou contra a dependência e as depressões do poeta. Seu amor pela vida pesou mais, e finalmente, depois de seis anos, rompeu com ele porque, como disse: “Não posso ser fiel aos outro, apenas a mim mesma.” Tinha uma obra a realizar, e devia fidelidade à sua natureza expansiva, à sua paixão pela vida e ao seu trabalho. Lou despertava o talento dos outros, mas mantinha um espaço próprio. Comportava-se como todas as personalidades próprias da época, cujas ligações românticas todos admiramos, quando tais personalidades são homens. Tinha o talento da amizade e do amor, mas não se deixou consumir pelas paixões dos românticos, que os levaram a preferir a morte à perda do amor. Mesmo assim, inspirou paixões românticas. Pela atitude, pelo pensamento e pela obra, estava à frente do seu tempo. Tudo isso Peters transmite, sugere, confirma. (…)

>> Era natural que Lou me fascinasse, me perseguisse. Mas eu me indagava o que ela significaria para uma mulher jovem, uma jovem criativa e moderna. Foi então que resolvi discutir Lou com Barbara Kraft, que num estudo sobre ela escreveu: “Durante a vida de Salomé (1861-1937), ela presenciou o fim da tradição romântica e se tornou parte da evolução do pensamento moderno, que frutificou no século XX. Salomé foi a primeira ‘mulher moderna’. A natureza de suas conversa com Nietzsche e Rilke antecipou a posição filosófica do existencialismo. E, por seu trabalho com Freud, ela figurou com destaque na evolução inicial e na prática da teoria psicanalítica. A princípio, eu a vi como heroína – como merecedora do culto do herói, no que esse culto tem de mais positivo. As mulheres sofrem hoje, tremendamente, da falta de identificação com uma figura feminina heróica”.

Barbara achava que as figuras femininas heróicas quase não existiram porque suas biografias eram geralmente escritas pelos homens. Como mulheres, buscávamos mulheres que nos dessem força, que nos inspirassem e encorajassem. É o que faz o retrato de Lou por Peters. (..)

>>Discutimos as razões que a levaram de uma relação para outra. Podíamos ver que, quando muito jovem, Lou temeu o domínio de Nietzsche, que buscava um discípulo, alguém que pudesse perpetuar o seu trabalho. Depois de ler as cartas de Lou a Rilke, podemos compreender por que, depois de seis anos, ela achou haver esgotado seu relacionamento com o poeta, e o deixou. Demonstrou notável persistência na manutenção de sua identidade. Com graça e sabedoria, expressou a percepção feminina em suas conversas com Freud, que lhe respeitava as opiniões. Preservou sua autonomia, embora cercada por homens vigorosos, até mesmo dominadores. Como era bela, o interesse masculino passava com freqüência da admiração à paixão; se Lou não correspondia, era considerada fria. Sua liberdade consistiu em dar expressão às suas necessidades inconscientes profundas. Viu a independência como a única maneira de realizar o movimento. E, para ela, o movimento era o crescimento e a evolução constantes.

Copiou dos homens o modo de vida, mas não foi uma mulher masculina. Exigiu a liberdade de mudar, evoluir, crescer. Afirmou sua integridade contra o sentimentalismo e as definições hipócritas da fidelidade e do dever. Ela é excepcional na história de sua época. Não foi uma feminista, de modo algum, mas lutou contra o seu lado feminino para manter a integridade como indivíduo.

H. F. Peters, que compreendeu Lou perfeitamente, cita a síntese que ela fez de sua própria vida: “A vida humana – na verdade, toda a vida – é poesia. Nós a vivemos inconscientemente, dia a dia, fragmento a fragmento, mas, na sua totalidade inviolável, ela nos vive”. 

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